Todo mundo aqui conhece a história da Bela e a Fera, conto de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont consagrado na animação da Disney de 1991. Para recordar, um príncipe é amaldiçoado por uma feiticeira depois de tê-la recusado abrigo, sendo transformado numa horrenda besta humanoide até que aprendesse a amar verdadeiramente alguém… e fosse amado de volta. Para a sorte do príncipe, o destino o fez encontrar a Bela, a filha de um mercador que, em razão de uma tempestade, deu o azar de se esconder no palácio da fera, sendo por ela aprisionado. A Bela se oferece para ficar no lugar do pai e o resto vocês já sabem, eles se apaixonam e a Fera volta a ser um homem gato, rico, mas, desta vez, de bom coração.
Esse clássico nos ajuda a compreender a estranha (e improvável) relação entre Saturno e Vênus, dois astros de efeitos e características bem distintas, sendo o primeiro, um maléfico e o segundo, um benéfico. Saturno, obviamente, faz a vez da Fera: solitário, avarento, de aparência assustadora, inseguro, impiedoso, porém requintado e de profundos conhecimentos . Já a Bela é a Vênus: charmosa, confiante, de bom coração, disposta a encontrar beleza onde há feiura, apreciadora de histórias e detentora de muitas vontades e sonhos. Um casal aparentemente impossível, mas que acabou dando muito certo.
Quando observamos as dignidades essenciais dos planetas, notamos que Saturno tem sua exaltação (máxima expressão) no signo de Libra, que é regido pela Vênus. Em outras palavras, podemos dizer que Saturno é recebido como convidado de honra na morada diurna da Vênus. E por que isso acontece? Hora, Saturno é o astro dos limites, sem os quais torna-se impossível interagir de forma saudável com o outro. Mais do que isso, permite com que compreendamos a nossa insuficiência, de modo que as relações se tornam necessárias para complementar as nossas faltas, o que apresenta o ser humano como um ente social por natureza. É por entender que nosso “eu” não está presente de forma totalizante no mundo que nos tornamos capazes de nos regular e não invadir o espaço dos demais, freando o impulso conquistador iniciado em Áries e, assim, garantindo uma organização que visa a troca e a compensação mútua (representado pela balança). É graças a isso que nasce o comércio e a diplomacia como uma alternativa à guerra e ao saque. Dessa forma, podemos dizer que Libra redime a solidão de Saturno, indicando que é possível conviver sem o risco de minar as próprias estruturas.
A Vênus, por sua vez, não possui uma dignidade expressiva nos signos regidos por Saturno, salvo a triplicidade da terra em Capricórnio. Em contrapartida, ela divide, com o grande maléfico, uma afinidade por casa. Na tradição, existem duas formas de estabelecer uma conexão entre planetas e casas: a primeira (e mais importante de todas) ocorre por júbilo, e a segunda, cuja finalidade é meramente teórica, dá-se pela relação da ordem caldaica.
Dessa maneira, nota-se uma coincidência interessante: a Vênus tem relação caldaica com a casa 12, local de júbilo - alegria - de Saturno. A casa 12 funciona mais ou menos como o palácio da Fera: um lugar isolado, amaldiçoado, escuro, cheio de segredos, com calabouços, objetos encantados e um ser demoníaco habitando-o. Quando a Vênus encontra-se nesta casa, ela tem a possibilidade de experimentar os prazeres que são proibidos pela sociedade, tal qual a Bela, uma ávida leitora, pôde fazer na biblioteca da Fera sem que fosse reprimida ou criticada como acontecia no vilarejo onde morava. Com frequência, a única alternativa de vivenciar os desejos que são considerados tabus é escondendo-se dos demais, como aconteceu (e ainda acontece) com muitos grupos marginalizados ao longo da história. E é claro que isso não é algo que podemos romantizar, já que as causas que levam a essa vida oculta são cruéis e, ao assumi-la, ficamos sujeitos a uma série de riscos que os bem encaixados na sociedade jamais poderiam imaginar. A casa 12, afinal, é o local dos mal intencionados, dos aproveitadores, dos sequestradores e por aí vai. Também ela pode nos levar ao vício através dos prazeres não dosados que são potencialmente autodestrutivos.
A Bela deu sorte de encontrar uma Fera disposta a encontrar o melhor de si mesmo e quebrar com a maldição que havia recebido, mas o final poderia ter sido bem diferente como nos contos originais da Chapeuzinho Vermelho ou da Cachinhos Dourados. Ao mesmo tempo, a Vênus por vezes consegue contornar Saturno, concentrando-se nessas afinidades estranhas que ambos podem espelhar um no outro, assim como Saturno consegue se moldar através da Vênus, convertendo seu medo em amor contínuo. Essa relação costuma não dar certo quando pensamos nas coisas externas: raramente a Bela se dá bem se apaixonando pela Fera, podendo gerar desde uma síndrome de Estocolmo a uma síndrome de salvadora. Mas pode ser muito produtiva para as coisas internas: autorizar a expressão saudável dos desejos fora dos códigos da sociedade.
Guilherme de Carli
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Que texto incrível!
Obrigada por dividir aqui.
Tinha dificuldade em entender a exaltação de Saturno em Libra. Me parecia incabível. Obrigada pelo maravilhoso texto!